O Globo
Num cenário de negócios inflados, artistas discutem a necessidade de ter representação comercial para sobreviver e questionam o ritmo acelerado imposto pelo mercado
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RIO – Quando deixou a galeria que a representava, em maio passado, a artista Laura Erber, 33 anos, se via mergulhada num “modelo tedioso”: preparar mais uma série de obras para uma exposição na galeria; produzir, em seguida, outro trabalho para responder à demanda das feiras de arte; abrir seu ateliê para colecionadores; vender; fazer mais uma série de obras; produzir outro trabalho para feiras…

— A sensação que tenho é que se impôs este modelo: o artista de sucesso é o que está na galeria poderosa, circulando nas feiras de arte mais representativas, aqui e fora — lembra ela, que já fez individuais na Fundação Miró, em Barcelona, e no Museu de Arte Moderna do Rio e acaba de lançar mais um livro, o romance “Esquilos de Pavlov”. — Há uma obrigatoriedade desse ritmo de produção, e não me refiro à galeria que me representava especificamente ( a carioca Mercedes Viegas ). O modelo é de um ritmo muito desesperado e te leva quase a transformar seu trabalho em algo mais superficial e mais fácil. Resistir um pouco a esse modelo é fundamental até mesmo para você poder trabalhar, caso contrário torna-se uma profissão liberal como qualquer outra.

Com a recente histeria em torno do mercado de arte — e as galerias ultrafortalecidas —, o questionamento de Laura reflete uma preocupação crescente entre os artistas: é possível sobreviver e fazer circular o trabalho de arte sem estar vinculado a uma galeria comercial? A alternativa mais óbvia, das instituições (sem fins lucrativos), vive um período de enfraquecimento: são raros os salões de arte, os prêmios, as convocatórias para a criação de trabalhos que, enfim, circulem sem exatamente a necessidade de venda.

— A gente ficou muito dependente da galeria, por uma atrofia de outras instituições ou de paradigmas mesmo. No próprio imaginário do que é ser artista contemporâneo, o modelo da galeria acabou se impondo, e o que vejo é quase uma corrida maluca para chegar a esse pódio delirante. A mim, se for para cumprir um cronograma, uma trajetória totalmente pré-determinada, não interessa — completa Laura.

A questão, que vem motivando discussões em redes sociais, já foi mote de obra de arte: em sua mostra na galeria Millan, em São Paulo, o artista paulistano Rubens Mano incluiu uma placa em que se lia o texto: “Artista sem galeria é artista morto”. O carioca Arjan Martins, um sem-galeria desde o início de sua carreira, se vê como um “kamikaze”. Seu discurso soa ainda mais pessimista que os de seus pares:

— O artista sem galeria realmente fica numa situação muito difícil no momento em que tem que se mostrar, se colocar no mercado, se mostrar profissional… Entendo que o artista sem galeria, sem representação no país, é quase que um herói e quase um kamikaze. Está apostando na própria subjetividade. Se vai ganhar alguma visibilidade precoce, sorte dele. Mas é muito raro — lamenta o carioca.

Aos 53 anos (20 deles como artista plástico) e com obras em coleções como a de Gilberto Chateaubriand, Martins diz que é difícil vender obras sem a mediação de uma galeria (“Não tem fila de colecionador na porta do meu ateliê, quem dera…”). Ainda assim, o artista diz que não abriria mão de “ter paz para trabalhar” em troca de uma representação comercial.

— Quero tocar minhas pesquisas com um pouco mais de dignidade, e isso quer dizer comida na mesa, ter minhas contas pagas e uma representação um pouco mais cuidadosa. Não digo com isso que não considero o papel do galerista importante na vida de um artista. Não vejo nada de mau nisso, acho até que é uma ponta interessante. Mas são duas pontas distintas: a que produz, de forma solitária, no ateliê, e a que escoa essa produção — avalia Martins.

Com trajetória mais longa (50 anos de carreira), Carlos Vergara, 71, trabalha com um modelo, digamos, híbrido: não tem exclusividade com uma galeria específica, ou seja, qualquer uma pode negociar suas obras — e ele também.

— É possível viver sem galeria? Eu respondo: É, mas não é possível viver sem marchand. Há pessoas com escritórios de arte, que entendem do assunto e que vendem meu trabalho no Brasil todo — afirma Vergara. — Mas preciso dizer: a primeira instância do meu trabalho não é o produto, é o pensamento. Eu o troco por dinheiro, porque preciso viver. Posso, assim, fazer obras invendáveis. Estou agora mesmo trabalhando com o lixo do Museu do Açude, e isso não é, obviamente, para vender.

Vergara “profissionalizou” o próprio ateliê. É lá que ele concebe e produz novas obras, recebe amigos (entre eles, colecionadores e marchands que, eventualmente, podem comprar seus trabalhos), armazena peças e organiza exposições.

— Como tenho 50 anos de carreira, posso me dar o luxo de não ter exclusividade com ninguém e expor onde eu bem entender. Isso não quer dizer que o trabalho dos marchands e galeristas não é importante. Jean Boghici, por exemplo, é um nome fundamental na arte brasileira, por colocar no mercado algo que, a certa altura, era quase clandestino ( como obras políticas dos anos 1960, entre outros ). Agora, defendo que os artistas abram mais seus ateliês, para pessoas que estejam interessadas em arte de um modo geral, compradores ou não.

O galerista Márcio Botner, à frente da A Gentil Carioca, tem olhar ponderado: diz que a “galeria é apenas um dos muitos canais que a arte tem para circular”, embora reconheça que, num cenário de mercado de arte inflado, os espaços comerciais acabam por ganhar destaque em relação às instituições.

— A galeria pode ajudar a pensar ações e deslocamentos na trajetória do artista, criar relações dele com curadores, museus, colecionadores. Mas o mercado não pode ser o único legitimador da arte. Isso é muito perigoso. Sinto muita falta de ações dos próprios artistas. Sinto falta de projetos como o Orlândia ( criado por iniciativa de artistas, no início dos anos 2000, realizava exposições em casas no Rio, sem vínculo com instituições ou galerias ) — lembra Botner.

O galerista diz que, por outro lado, não se pode negar a importância das feiras de arte que, talvez pelo enfraquecimento das instituições, tenham se tornado “o ponto de encontro de todas as pontas do circuito”.

— As feiras são uma pressão que o artista sofre, mas que as galerias sofrem também. A Gentil deve participar de oito neste ano. Para a ArtRio, por exemplo, nossa tendência é convocar os artistas para que produzam obras para a feira. Mas não há uma imposição e não acho que a galeria seja a única salvação — completa.

Para a curadora assistente do MAM do Rio, Marta Mestre, “a arte está inserida no mercado, e não faz sentido pensar de outra forma — ou seja, ela faz parte de um sistema de circulação e difusão”.

— E, nesse sistema, há artistas que não conseguem criar seus processos de subjetividade. Para eles, o modelo não serve — avalia ela. — Cada vez mais tenho sentido da parte de alguns artistas a vontade de inventar novas circulações, novos processos de exposição e de venda.

Marta diz que costuma procurar artistas fora do mercado para exposições, já que “a pesquisa na galeria gera uma curadoria previsível”:

— Quando o curador vai buscar fora da galeria comercial, consegue uma lufada de ar fresco.

Participante da elogiada 30ª Bienal de São Paulo, no ano passado, e finalista do prêmio Pipa deste ano, o paulista radicado no Rio Cadu, 35 anos, mantém um discurso crítico sobre a relação entre artistas e galerias. Ele próprio é representado pela Vermelho, de São Paulo, que, diz, “não está interessada apenas na venda, mas em arte, em fomentar a discussão da arte e implementar a questão do profissionalismo”.

— Não se trata de pensar a galeria como vilão e o artista como coitado. Só acho que, em alguns momentos, como aconteceu e sempre vai acontecer, há um certo desequilíbrio de poder, em que o artista tem que procurar soluções próprias para colocar seu trabalho no mundo. E eu venho de uma geração que é dessa natureza. Em alguns momentos, quando não há solução, o artista encontra a sua — defende ele.

Para Cadu, o artista deve ser “uma raposa espreitadora que, na ausência de alternativas, cria alternativas”.

— As pessoas se esquecem disso: elas estão por diversos motivos no circuito de arte. De vez em quando, por arte. A maior parte está tentando resolver carências que são periféricas à questão da arte, que têm muito mais a ver com jogos de poder do que necessariamente com a afirmação da poesia ou com a construção de uma estratégia lúdica — afirma.

Como se quisesse se lembrar do motivo que o levou à arte, Cadu passou um ano vivendo numa montanha, isolado numa cabana, de junho de 2012 até março deste ano (em Nogueira, distrito de Petrópolis). Seu desejo era, nas palavras dele,“rasgar o tule que divide vida e arte”. Fez disso sua tese de doutorado e diz que, nesse período, pôde não apenas criar objetos de arte, mas “estar em arte”:

— Você se apreende ao mundo de uma forma muito mais espreitadora. E é isso que os artistas, as galerias e todos que estão envolvidos na arte têm que entender: o artista faz o que faz para espreitar o mundo. Ele fareja o mundo para saber que os territórios estão compartilhados, que ele não está sozinho. O que eu tenho que fazer é ocupar e desocupar o território de maneira afetiva, com ternura, com doçura, e eu vejo isso cada vez menos.